sábado, 18 de janeiro de 2025

A unidade do homem na sabedoria

Michel de Montaigne

Sebastião Jacobina | Garanhuns, 23/07/1994

A crônica é o gênero literário considerado como o mais fácil de ser perpetrado, impingido pelos croniqueiros a quem imprudentemente os ler. A advertência está feita.

No ser humano, tanto na criatura simples, de pouco conhecer e discernimento, bem assim no possuidor de  abundante saber filosófico, os sábios pensadores, há um elo que os igualham nesta consistência niveladora - a sabedoria inata à espécie.

O primeiro - o homem comum, expressa este dom divino, instintivamente de modo às vezes fascinante. É a decantada sabedoria popular.

O outro - o dotado do carisma filosófico, usa a escrita clássica e a oralidade gravadas na cultura universal.

Após o exórdio meio pedante, eis o fato (trivial na sua  aparência) que julguei ser  ilustrativo da tese referida sucintamente.

Aconteceu há anos. Estava eu na Estação Rodoviária do Recife; próximo, passavam dois homens - operários suados, usando camisetas brancas de uso de trabalhadores braçais - num som de  voz bem audível, talvez em resposta a algum comentário ou queixa dos efeitos da ressaca de "homérico" bebedeira, um deles diz:

"Se a ressaca desse na gente antes de beber, ninguém fazia farra".

Esta frase tão singelamente dita, significava que o prazer ou alegria de um pileque: as animadas conversas, a embriaguez dos sentidos e a euforia, consequentes deste estado pessoal, é destruído pela desagradável curtição da temida ressaca.

No momento, ante o conceito sempre expresso pelos comuns mortais consumidores das "águas espirituosas", me veio à mente que aquele homem simples - desconhecedor de sofismas e aporias - estava repetindo um lugar - comum secular, parafraseando o escritor e pensador francês Michel de Montaigne, o clássico criador dos Ensaios, discorrendo sobre os prazeres da vida, ao afirmar:

"Se a dor de cabeça nos viesse antes da embriaguez, bem que nos guardaríamos de beber em excesso. Mas o prazer para nos enganar, vai na frente e nos oculta o que se segue".

Consequência dos ditos antes enunciados: continuo fazendo minha "filosofia".

Ai estão duas manifestações de pessoas com características mentais, físicas e de modos de vida, remotas no tempo e no espaço.

Vê-se que no queixume do homem da Rodoviária estava sendo parcialmente mantida a unidade ontológica do Pensamento. O que aflorou foi a essência do saber humano sempre ressurgindo no andar das idades.

O motivo condutor de uma simples crônica é o momento, o "Kronos", vividos por seu autor, nas circunstâncias dos fatos. Valeu para mim "contar o caso como o caso foi", apesar de quase descambar para a tecitura de tema subjetivo que deve fugir a escritos desta natureza.

*Jornalista, historiador e cronista.

Créditos da foto: https://pt.wikipedia.org/wiki/Michel_de_Montaigne 

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