domingo, 19 de janeiro de 2025

O verdadeiro sentido de um amigo no Natal

João Marques dos Santos com 5 anos de idade
João Marques dos Santos com 5 anos de idade

João Marques* | Garanhuns, 30/12/1994

Por este tempo, ele vem todo ano. Não é propriamente como o turista que sempre é reconhecido como tal, pelo seu jeito nômade e o andar leve de quem não tem o que fazer. Vem e fica por aí, misturando-se com todo mundo, sem que se confunda, contudo, o seu  caráter de homem simples, devotado às melhores coisas da vida.

Nem ainda o conheci direito, mas sei que é Amigo (o "a" maiúsculo, por ser verdadeiro amigo). E, para ser sincero, eu só vi o retrato e muito ligeiramente. Os olhos bonitos, azulados... As sobrancelhas, estas eu nunca vira outras iguais. Pretas, muito pretas e finas... como o breu e delicadas como a flor. Estendidas pela testa larga, num rosto de boa conformação. Tão longas as sobrancelhas, que pareceram, numa impressão rápida, o retrato de um homem de outros planetas ou de uma raça de caracteres robustos, perdida no passar dos séculos.

Como toda cidade, Garanhuns comemora o Natal e ele, o homem de quem falo, chega e se junta às comemorações. Participa aqui e acolá, sorridente, com seus olhos impressionantes do retrato que vi. Procurando ajudar, age de forma velada sempre, mas com tanta inteligência, que consegue, pouco a pouco, ensinar e festejar bem o Natal.

Eu era menino e recordo do Natal antigo na avenida Santo Antônio. As tulhas de abacaxis maduros exalando o cheiro forte. As toldas simples, iluminadas com luz de candeeiro, com umas garrafas de aguardente numa mesa larga, uma caçarola cozinhando carne de porco... Homens sentados nos bancos mal acomodados, rindo, fumando e dizendo glosas, com os copos de bebida nas mãos. Outras, eram feitas de palha de coqueiro, e de cujos caibros já pendiam lâmpadas elétricas. Observava tudo, curioso o notava, sem o conhecer direito, o homem Amigo, que batia palmadinhas nos ombros festivos das pessoas e apertava-lhes as mãos, confraternizando-se e dizendo: Feliz Natal! Outros chupavam abacaxi, descascando-o com uma faca peixeira bem amolada e, em seguida, colocando na boca as rodelas do fruto espetadas na ponta. Vi, uma vez, quando um matuto elevou o abacaxi descascado no ar, como num grande brinde, e gritou aos circundantes vivas à Festa e um entusiasmo "Natá chei de filicidade pra todos". O visitante nosso estava ali também. Agarrando outro abacaxi maduro e maior, ergue-o nos ares e respondeu, no mesmo tom festivo: 'Feliz Natal!"

Muito desajeitado, porém de boa vontade, infiltra-se noutros lugares mais requintados da Festa. Há luxúrias, gente que mal se liga ao verdadeiro motivo da alegria... Ele, o Amigo, cochicha no ouvido de uma criança uma poesia, de outra pessoa uma mensagem, um sorriso, qualquer coisa digna, a aproveita a reunião no espírito fraterno da passagem do Natal. Vai a todo o lugar em que há festa e participa dos louvores e da felicidade da comemoração. Entra nos templos e, de um canto, ao lado de uma pessoa menos notável, faz também a sua prece a Deus. Não reza só! Acompanha a dificuldade ou tagarelar de alguém que, humilde, agradece o nascimento do menino Jesus... As  lágrimas rolam nas faces, o sentimento abrasa os corações... Observa as lapinhas pobres e pensa em situações iguais àquelas... Os lares pobres que, nesta noite, nada têm de adorno, e o que é pior, nem uma lembrança sequer... Outros, os pobres ainda, nada de material, mas há o espírito de paz, o contentamento por ser a noite de Jesus. O rosto se ilumina de alegria e, com seus olhos bonitos, segue agora, de novo para Avenida Santo Antônio, onde está a maior festa, a do povo. Para ante os bazares e as barracas de jogo, lamentando os que perdem e ficando alegre com os que ganham e fazem bons negócios. Com muito zelo sonda os corações de todos e, bondoso, sempre acha uma forma para que ninguém saia perdendo. Certamente, lembra a disputa do manto de Cristo, que foi feita com jogo de dados. E compreensível, também lembra as palavras "Senhor, perdoa, porque eles não sabem o que fazem".

Acena para um Papai Noel, que trabalhava para ganhar o presente de algum dinheiro. Ajuda a consertar a iluminação elétrica de um árvore de natal, que não piscava certo. Tudo faz, confesso, para que todos tenham um Feliz Natal.

Quando eu era menino outra vez, fiquei no sítio, sem o Natal da cidade, todo iluminado e cheio de música, de abacaxis e gente bem vestida... Fiquei triste, porque estava sem Natal... Pus-me a cantarolar uma canção de Natal, Noite Feliz... mas muito triste, muito longe e chorando até. Comecei a lembrar do Amigo, que, àquelas horas, estaria certamente perto dos abacaxis e do carrossel que rodopiava alegre, com os gritos de contentamento das crianças... A lembrança foi-me consolando. O canto foi ficando animado. Daí a momentos, eu tinha um dos melhores natais. Uma paz humilde... Qualquer coisa real do ambiente original do nascimento de Jesus. Até o cheiro de um curral mais perto me vinha às narinas com o ar milenar da manjedoura de capim. Aprendi nesta noite que Natal é simplicidade, como o Amigo faz todo ano e passando desapercebido por quase todo mundo.

Como disse, não conheço bem, apenas o retrato ligeiro. Sei que é humilde, Amigo, muito inteligente, e não gosta (no íntimo) de lisonjas... nem de tratamentos nobres, nem de nada que vá endeusá-lo. Ele gosta mesmo é de ajudar. Tudo faz pela felicidade dos outros... Imagine, como pode o Amigo nosso acabar uma noite de Natal... Por um beco escuro, esburacado, conduzindo pelo braço um pobre homem embriagado e gritando, entre a pobreza e um pouco de virtude não entorpecida da alma, - Feliz Natal, meu Amigo... Feliz Natal pra você que me considera. Eu sou homem de consideração!...

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, poeta, contista, cronista e compositor. Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município, foi presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Manteve, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro. João Marques desencarnou em 22 de setembro de 2024.

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